2º Conto: Andarilhos Noturnos

ANDARILHOS NOTURNOS 

Do lado de fora dos prédios abafados por sistemas anti-som, as luzes ofuscam as estrelas e o som da noite viva atrapalha os sentidos do sentinela. 

Vestindo roupas comuns, ele se mistura à multidão de famintos. Em suas costas, uma mochila surrada carregava documentos de uma vida sem graça e instrumentos para uma caçada. 

Aquele não era seu trabalho, mas havia ocupado seu tempo livre com aquilo. Talvez fosse um hobby, algo com o que se ocupava desde que passou a levar um pouco mais a sério sua impressão de que há algo de errado no mundo, de que nem tudo é o que parece ser. 

Foi uma longa transição fundamentada em interpretações e acontecimentos antes de estar ali, esperando o inevitável, armado não apenas com uma pistola roubada, mas com todos aqueles símbolos sagrados, estacas, gomos de alho e sal. 

Teve de interpretar a porção sinistra que há por trás da humanidade, por trás de toda aquela normalidade forçada na qual os homens teimavam em acreditar. 

Um longo processo de percepção do obscuro, onde os fenômenos mais comuns se mostram sem respostas, onde pessoas desaparecem, reaparecem assassinadas, onde os crimes mais diferentes se mostram relacionados e tudo o que resta são respostas não-naturais. 

Tudo faz parte da paranoia, mas, observando o impossível, tudo parecia se relacionar. 

E ele esperava debruçado sobre o capô de seu PASSAT – 73, observando o movimento dos bares do centro. Passava da meia-noite e o medo de poder se enganar corrompia seu juízo. Não esperava ter uma conversa - não uma conversa amistosa. Queria respostas, explicações. 

Normalmente ele estaria perseguindo corruptos em seus escândalos políticos, ou estaria revelando suas fotos do dia a dia, mas, dessa vez, Nicolas investigava um morto - ou ao menos, uma pessoa que deveria estar. 

Tratava-se de um antigo amigo dado como morto há três meses, quando filmava um confronto entre policiais e traficantes na área baixa da cidade e que, estranhamente, reaparecia na vizinhança. 

Seus pensamentos são interrompidos pela chegada de um homem corpulento, vestia seu típico terno giz e gravata. Era alguém que acompanhara desde a universidade. Haviam entrado juntos no jornal. Mas agora estava muito diferente. 

Não era apenas o fato de ter sumido, mas de todos os outros aspectos sombrios que ele assumira tempos antes de desaparecer. Sua palidez agora escondia seus traços latinos e, sob seus olhos, profundas olheiras marcavam noites em claro. 

Após falar com o atendente, o grande homem sai do bar, seguindo a rua estreita e fétida que contornava o estabelecimento, parando frente a uma porta de metal em um beco sem saída. 

Não demoraria muito para Nicolas descobrir seu segredo. Sorrateiramente, o investigador agacha-se por trás de uma imensa lata de lixo. Seu coração treme; era a hora, ele sabia. 

A porta foi aberta vagarosamente e dois olhos amarelos brilharam de dentro da escuridão, mostrando um homem gordo que cobria seu corpo com largos tecidos escuros. Era careca e tinha a face tão pálida e doentia que suas veias se destacavam. 

O sentinela tentava observar por trás do lixo. Seus fantasmas incomodavam sua mente: era uma mistura de filmes e realidade, ele pedia coragem ao seu Deus para seguir em frente. Suas mãos tremiam e seu peito doía em angústia. 

Escondido, ele observou seu amigo se ajoelhar aos pés da criatura, tentando tocar as mãos do recém chegado, mas esse não permitiu. Então, ofereceu seu pescoço e o gordo homem abriu seus lábios muito roxos, exibindo quatro grandes presas - mordeu o pescoço da vítima. 

Paralisado com o choque, Nicolas percebeu que o que diante dele estava era o monstro que havia causado sua insônia pelo amigo: o Vampiro. Desesperado, buscava a pistola na bagunça de sua bolsa. Quando finalmente conseguiu apontá-la, o monstro já suspendia seu amigo morto. Agora, literalmente. 

O tiro foi encoberto pelo barulho da noite paulista. Os olhos da criatura cruzaram os do sentinela - eram olhos de cobra, amarelos e frios. Pelo seu queixo escorria o sangue ainda quente e, aos poucos, a bala era expelida do pescoço do monstro. 

Repetidos tiros saíram da arma controlada pelo pavor, acertando o peito e a cabeça do sanguessuga. Tudo em vão. A criatura se aproximava. Suas faces bestiais, cobertas por profundas olheiras, refletiam o ódio. Haviam atrapalhado sua refeição; haviam tentado contra a sua vida; mortais estúpidos. Sempre mortais. 

Chutou o homem apavorado, causando um ruído seco - era um magricela sem futuro: antes vasculhava uma bolsa em busca de alguma coisa que pudesse ajudá-lo, e agora se contorcia em dor, apoiando-se na parede. 

Pegou sua mochila; queria saber com que tipo estava lidando, jogando todas as coisas no chão. Viu cair réstias de alho, junto a estacas, crucifixos e muitos papéis. Fosse quem fosse, estava conscientemente perseguindo um vampiro. Pegando uma das folhas, observou vários nomes e telefones. Eles seriam os próximos. 

Nicolas sentia suas costelas quebradas e sua asma em crise. Tentava pensar no que fazer. Estava muito longe de suas coisas e seu corpo não o ajudava. Seu coração estava apertado. Temia pela própria vida, precisava fazer algo. 

O monstro caminhou até ele e chutou-o novamente, quebrando mais de suas costelas. Pegou o caçador pelos cabelos e o puxou para perto da porta. Nicolas gritava, mas sabia que não iria adiantar. De seus olhos humanos saiam lágrimas. Não conseguia raciocinar. Apenas o sentimento de impotência e medo lhe supriam a vida. 

-- Sou imortal – A voz soou baixa, como um veneno de sangue e morte. – Já você... 

O vampiro tocou o rosto do mortal - seu toque era gelado e suas unhas negras cortavam a pele, fazendo filetes de sangue escorrer. O garoto tremia e o morto-vivo adorava aquela sensação de predador. Gostava de caçar seu alimento, mas adorava ainda mais brincar com a comida. 

-- Nicolas Gomes. – Ele pronunciava sílaba por sílaba em sussurros. Queria prolongar o sofrimento. – O que acha de agora servir-me com seu sangue? 

Tremendo sem controle, ele tentava prolongar sua vida. Sentia uma dor extrema na região de seu abdômen, mas amava demais a vida para se deixar debilitar. Percebeu o monstro acocorar-se à sua frente; não tinha pêlo algum no rosto. Olhos amarelos como os de cobras, lábios muito roxos banhados no sangue que lhe caía ao queixo, entreabertos por longos caninos brancos que cintilavam como lâminas. 

E enquanto o vampiro se aproximava de seu pescoço, ele lembrou: pegando a estaca pendurada em sua canela, cravou-a no peito do vampiro, que gemeu de susto e o estapeou com toda a força, fazendo-o bater sobre a parede fria. 

Meio desacordado e sentindo sua mandíbula frouxa, temeu; ainda segurava a estaca em suas mãos. Para seu pavor, percebeu o vampiro se levantar e avançar em passos lentos. Não conseguia virar sua cabeça, mas sentia o chão pelo qual escorria seu sangue - aquela seria sua morte. 

O monstro debruçou-se sobre seu rosto, ficando de joelhos. Lambeu o sangue que escorria de sua boca - antes pelo chão e depois, ao redor. Então se afastou, mostrando novamente seus olhos; aquele era um sinal. O caçador não teve dúvidas: enfiou a estaca com todas as suas forças no olho esquerdo do vampiro, revirando a ponta por dentro daquela cabeça amaldiçoada. O monstro grunhiu de dor, mas antes que pudesse reagir, já estava desacordado, com seu cérebro esmigalhado. 

Nicolas tomou-se de um espírito de vingança e, arrastando o próprio corpo, cerrou os punhos e pés do morto–vivo, amarrando o resto do corpo em sacos de lixo e nas próprias roupas do monstro. 

Ele brincava com o isqueiro e fumava algo de uma marca barata, esperando o despertar do monstro. Seria ainda naquela noite sem luar que ele descobriria se vampiros são ou não imortais, independente do quanto suas costelas gritassem de dor ou sua asma o fatigasse. Independente de quanta gasolina tivesse de gastar. 

E antes que gritos se misturassem à agitação noturna, ele vasculhava suas anotações e enrijecia os próprios nervos para uma verdadeira entrevista com o vampiro.

Autor: Felipo Bellini Souza     Criação: 22/02/2009       Publicação: 22/08/2009       Objetivo: Dráculea: O Livro Secreto dos Vampiros      Organizador: Ademir Pascale

Comentários

@FFenrirX disse…
Muito bom! Gostei mesmo. Lembrou um prelúdio de RPG no estilo Vampiro.

Sucesso!
Erdnã disse…
Gostei muito!!!
Deu saudades do tempo que eu jogava RPG.
Cabanas Neto disse…
Ficou muito bom!

Tempos de Vampiro a Máscara...

Parabéns!
Demonstre disse…
Muito obrigado gente! Vou publicar mais contos do tipo - um por mês! Tanto aqui quanto no cavaleirosdasnoitesinsones.com.br
nesusa tavares disse…
muito bom,representando ai os bons tempos de vampiro