20º Ensaio Cultural - Utopias de Platão a Francis Bacon

Quem acompanha minha coluna há um certo tempo deve se lembrar que falei sobre utopias no meu 5º Ensaio Cultural e já resenhei algumas distopias (Anthem, Admirável Mundo Novo e A Revolução dos Bichos). Espero que não estejam cansados da minha insistência nesse tema, porque eu pretendo retomá-lo quantas vezes eu vir necessário, haja vista que este é um campo de estudo que muito me interessa. Modéstia a parte, já é minha especialidade antes que eu me torne especialista. Hoje me limitarei a contar brevemente o desenvolvimento histórico da tradição literária utópica. Por ora não analisarei os fatores sociais, exceto onde se faça extremamente necessário. Limito também meu escopo à ficção utópica, excluindo Christianopolis e os complexos tratados socialistas utópicos, entre outras obras sobre quais também pretendo escrever um dia.

Uma primeira linha da tradição literária utópica, inaugurada pela República de Platão, segue uma estrutura de diálogo. Em A República, esse diálogo tem Sócrates e vários atenienses e estrangeiros como interlocutores discutindo a definição de Justiça, mas todas as definições dadas se mostram defectivas. Para melhor explicar o conceito, Sócrates fala da cidade imaginária de Kallipolis como a perfeita incorporação do Bem e da Justiça como definidos no diálogo. 

Na interpretação de Hans-Georg Gadamer, a utopia esboçada por Platão é heurística. Isto é, busca mostrar as consequências de determinadas ações caso sejam seguidos rigorosamente determinados princípios. Tal interpretação toma as formulações de Sócrates como irônicas, pressuposto seguido também nas interpretações de teóricos como Leo Strauss e Allan Bloom. Dessa forma, A República pode também ser interpretada como uma distopia. É essa a minha própria interpretação, embora seja também a menos óbvia em uma leitura precipitada. Karl Popper considera que a intenção da obra é esboçar princípios políticos e portanto critica A República como uma obra inimiga da sociedade aberta. Hegel, por sua vez, a considerou uma tentativa reacionária de preservar a Grécia das inovações políticas. 

Todas essas interpretações, entre diversas outras, podem ser ampliadas e colocadas em um quadro para a classificação e interpretação das formas ficcionais utópicas. Portanto, para a leitura da tradição utópica, o ponto principal da influência de A República nas demais utopias não tem por como ponto importante a intenção verdadeira de Platão, embora a intenção de cada um possa convergir para aquilo que se interpretou da República. O que absorverão de fato é a estrutura dialogal e a existência de uma cidade imaginária. 

Surgem como utopias pioneiras seguindo o legado de Platão, Utopia de Thomas More, Nova Atlântida de Francis Bacon e A Cidade do Sol de Tommaso Campanella. Desta vez, não é a utopia que serve ao diálogo, mas o diálogo que serve à utopia. Os locais idealizados já não mais são mais frutos de uma demonstração em uma diálogo, mas o próprio mundo representado na ficção. Isso porque os personagens dessas utopias não somente falam nela como algo distante e intangível, como também estiveram nesses lugares.



A Utopia do More, inspirada diretamente por A República é tão controversa entre os estudiosos como é essa, não havendo até hoje clareza quanto à intenção do autor. O diálogo na Utopia do More é inicialmente desenvolvido por meio de correspondências que tentam tornar plausível a existência da ilha Utopia. Ainda na primeira parte do livro, Thomas More discute com Raphael sobre diversos assuntos relativos à ilha Utopia, a qual é comparada diversas vezes com a Europa. Raphael, identificando-se como platônico, critica os reis europeus nessa passagem: “Sem dúvidas Platão previu que se os reis não se aplicassem no estudo da filosofia, eles jamais permitiriam um conselhos de filósofos, pois estariam desde a tenra idade infectados e corrompidos com perversidade e opiniões terríveis”. Profundamente platônica, a Utopia do More é uma obra satírica, em que um não-lugar é usado como parâmetro de comparação com a Inglaterra de Thomas More, que sofria de diversos problemas de ordem moral.

Também inspirado por Platão, Tommaso Campanella escreveu A Cidade do Sol, diálogo entre um Grão-Mestre Hospitalário e um Almirante Genovês que visitou a cidade dá nome ao livro. Apesar de ter pretendido com sua obra uma crítica ao meio em que viveu, tal como o fez Thomas More, Tommaso Campanella não se contentou em comparar um mundo ideal com o seu: ele tinha um plano de tornar sua utopia realidade. Não era um plano muito feliz, pois a Cidade era uma teocracia de poder extremamente centralizado, com trabalhos dados a cada um não conforme sua vontade, mas de acordo com suas aptidões naturais. Da República, Tommaso tomou o sistema de divisão de trabalhos e o ideal do rei-filósofo, o qual ele pretendia que fosse o rei da Espanha(sobre essa questão em específico, o dominicano discorre em seu escrito A Monarquia na Espanha), fazendo uma desleitura radical do texto de Platão.

Para finalizar o ensaio, devo um breve parágrafo a Nova Atlântida, de Francis Bacon. Essa já adquire uma estrutura narrativa, com os diálogos se desenvolvendo conforme se narra a chegada dos exploradores à Ilha de Bensalém e seus encontro com os interlocutores, entre os quais o Governador, Joabin o Judeu e o Chefe da Casa de Salomão. Com este último, conhecemos a parte mais peculiar do livro, tratando da Casa de Salomão, instituto governamental que conduz experimentos científicos seguindo o método baconiano - delineado no tratado Novum Organum, do mesmo autor - visando o melhoramento da sociedade. A Casa era, em alguns aspectos, até mesmo superior ao governo em poder de decisão . Se a intenção de Bacon era tornar a técnica parte do governo é incerto, mas que a Nova Atlântida deixa isso fortemente a entender é inegável. Mais inegável ainda é que tantos acreditam até hoje que é possível e necessário que haja uma Casa de Salomão auxiliando o Estado.

Como pudemos ver, A República e A Utopia, com finalidade heurística ou comparativa entre uma sociedade virtuosa e uma viciosa, inauguraram a tradição utópica. As duas utopias seguintes, por outro lado, mostram um lado perigoso das visões utópicas. Francis Bacon antecipa o positivismo político a tecnocracia com a Nova Atlântida, na qual todas as decisões políticas eram tomadas depois de se aplicar o método científico pela Casa de Salomão. Tommaso Campanella dispensa comentários. O filósofo dominicano escreveu A Cidade do Sol durante a sua prisão por heresia e conspiração, ao ter tentado por em prática aquilo sobre o qual escreveu em seu livro. Com este ensaio, enfim, espero ter esboçado um pequeno resumo da história do gênero utópico considerando as quatro obras acima mencionadas. A discussão sobre as utopias e distopias, eu garanto, jamais terá um fim nas minhas colunas, retornando ocasionalmente. Portanto, aguardem por mais escritos sobre o tema.

Autor: André Marinho
Criação:08/07/2012
Objetivo: www.ligadosfm.com


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