29º Ensaio Cultural - Francis Bacon e o ídolo não mencionado


Sir Francis Bacon, ao lado de Descartes, Galileu e outros grandes gênios da revolução científica, é considerado fundador da ciência moderna. Em sua obra Novum Organum, o inglês minuciosamente explicou em diversos aforismas como deveria ser organizada uma forma de lógica que ele considerava superior à Aristotélica, caráter presente no título de seu tratado, referência ao Organon aristotélico.

Devemos entender, antes de tudo, o Novum Organum de Bacon como oposto ao Discurso do Método cartesiano, sendo este de caráter racionalista e aquele, empirista. Dizia Bacon que "o homem, enquanto servo e intérprete da natureza, pode apenas agir sobre ou entender algo que observou em fato ou pensamento sobre o curso da natureza. Além disso, ele nada sabe e nada pode fazer", isto é, que só podemos aprender pela experiência. Descartes o oposto dizia: "se você busca a verdade, deve ao menos uma vez na vida duvidar, o máximo possível, de todas as coisas", assim submetendo as nossas experiências ao julgamento da razão.

A oposição do filósofo inglês à razão idealizada pelo matemático francês como a forma mais confiável de discernimento se dá sobretudo pela noção baconiana de que o nosso julgamento está contaminado por quatro tipos de ídolos: os Ídolos da Tribo, os Ídolos da Caverna, os Ídolos do Mercado e os Ídolos do Teatro. O primeiro tipo se refere à própria dificuldade da natureza humana em compreender o mundo corretamente. O segundo, referente às experiências individuais e ao tipo de educação que indivíduo recebe. O terceiro, sobre o uso das palavras, ou à comunicação humana num todo. Por último, os dogmas filosóficos e preconceitos.

A pretensa vontade de Bacon em substituir a lógica aristotélica pelo método baconiano mostra-se, no entanto, um fracasso em seu propósito se considerarmos os efeitos dessa ideia hoje. A ciência, entendida pelos leigos - mas certamente não para os cientistas - tornou-se um dos maiores ídolos da modernidade. Não é necessário, àquele contaminado pelo Ídolo da Ciência, examinar se os métodos empregados em uma pesquisa foram adequados. Se "a ciência", representada por uma minúscula fração da comunidade científica, chegou a determinado resultado, nos olhos destes idólatras, então, isso não pode estar errado - por mais que uma pesquisa com muito mais rigor teórico apresente um resultado diferente e não seja tão amplamente divulgada. 

Observa-se que se pensa, hoje, em conhecimento científico como um sinônimo da tal Casa de Salomão apresentada na utopia baconiana da Nova Atlântida, em que existe uma acumulação de conhecimento, sempre como uma síntese de tudo que já foi experimentado e rigorosamente testado, produzindo consequências para a imediata aplicação social. Na Casa de Salomão, ao que me parece claro no livro, não há espaços para grandes contradiçõe: tudo se encaixa perfeitamente, numa Teoria Geral Unificadora que, apesar de todas as tentativas, até hoje não se mostrou possível graças a, entre outros fatores, uma incompatibilidade fundamental entre a mecânica quântica e a relatividade geral, ambas perfeitamente válidas nos seus escopos!

Observemos, por exemplo, o caso da revista de divulgação científica de maior circulação no Brasil, a Superinteressante - à qual não deixo de reconhecer competência e diligência no papel que lhes diz respeito - que, a fim de atrair mais pessoas a ler suas matérias, faz uso de títulos que muitas vezes não condizem em todo com o conteúdo do texto. Por exemplo, numa que diz que beber vinho deixa o casamento mais feliz, quando os dados apresentados mostram outra coisa... Certa vez vi um beberrão usar esta matéria, lida somente no título, ao que parece, como justificativa para beber em excesso com sua parceira, quando o estudo em questão diz que esta mesma felicidade acontece nos casais que fazem uso moderado... 

Entrando num campo mais polêmico, o da maconha - faz mal ou faz bem? - vê-se claro a omissão de informações pelas militâncias tanto proibicionistas quanto anti-proibicionistas, que se cegam a uma verdade muito simples e que sintetiza os estudos científicos conclusivos sobre esse caso: a maconha causa diversos danos à saúde, mas também pode ser usada para auxiliar em alguns tratamentos. Qualquer coisa diferente disso não é o que "a ciência" afirma. Reconhecido esse fato, deve-se usar outros argumentos além do apelo ao científico, considerando o impacto social, as relações dos indivíduos com o uso da droga, entre outros fatores que são objeto das ciências "soft", as quais têm muito maior dificuldade para entrar em acordo.

Tendo observado o acima, vê-se que ao combinar todos esses ídolos do Novum Organum com o novo Ídolo da Ciência, a ignorância científica generalizada nasce, mais do que da falta de acesso à informação, de uma idealização do científico, que, em si mesmo não permite tal coisa, exceto talvez para Francis Bacon e seus discípulos diretos e indiretos... Acredito que o próprio Bacon estaria assustado, hoje, ao observar como mesmo o rigoroso conhecimento científico tem sido mal interpretado e usado para justificar as afirmações mais absurdas. Ele também seria levado a reconhecer o erro de considerar o seu novo instrumento como único método confiável de se alcançar uma verdade, sendo que ele próprio fez uso da demonstração formal aristotélica, e não de seu próprio método, para se justificar. E, se o tivesse feito, seria uma lógica circular sem um mínimo significado. Assim sendo, para termos uma verdadeira alfabetização científica, temos que nos livrar deste ídolo e internalizar aquilo que dizia François Rabelais: "ciência sem consciência arruina a alma".

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