LOBOS
NA SOMBRA
De Praga ao Mar Negro, de Kiev ao Mar
Adriático, ao longo dos Cárpatos e do Danúbio, há uma guerra silenciosa que se
estende pela noite – sussurros do confronto entre os Lordes Vampiros e os
Amaldiçoados Lupinos. Estas são as guerras de gerações, batalhas que perduram por
mais tempo do que podem lembrar-se os humanos e os castelos em rochedos
íngremes, sendo apenas as densas florestas que toldam o gelo as testemunhas dos
lares de antigos Demônios.
No entanto, mesmo dois inimigos
naturais, raças de monstros, podem cooperar, ainda que por pouco tempo.
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Mais uma vez, os malditos otomanos
haviam atacado. Eram covardes que se esgueiravam pela noite como hordas de
ratos. Tudo estava planejado: espiões dentro do castelo abriram os portões e indicaram
as passagens encobertas; traidores que se desmascaravam homogêneos ao exército
inimigo homens e sombras que guerreavam no frio da nevasca, marcando seus
corpos com o peso gélido das armaduras sob a fúria do trovões, o entrechocar
dos metais e o fedor que subia dos corpos estripados e jogados no gelo.
Não havia como ser diferente, não
naquelas terras esquecidas por Deus, onde o sol ilumina por apenas seis esguias
horas, vis criaturas governam na mais absoluta ausência de humanidade e demônios
se aniquilam em carnificinas.
Aos poucos os incautos tombavam e da
penumbra percebia-se imortais e lobisomens compondo a batalha. Nem mesmo os
lordes vampiros haviam se negado ao calor do embate.
Um deles, Radu, senhor de todos os
otomanos, conhecido por sua campanha de dominação do submundo, já se via longe
de seu cavalo demoníaco. Estava absorvido na matança, ceifando almas e
retalhando corpos mortais, caçando, entre muitos o cheiro de outro vampiro,
aquele que seria a última cria do Dragão.
Naquele labirinto de metais e sangue,
ambos se caçavam, e ela alimentava a neve com o rubro sangue dos otomanos cujos
cadáveres mutilados acabavam em pilhas plenas de rostos que traziam a mesma expressão
de terror daqueles que, por um instante, encararam os olhos avermelhados da
filha do próprio anticristo.
Então, os dois se encaram. De um lado, o
cavaleiro em sua túnica negra, armado com uma longa espada e imponente elmo
prateado; do outro, uma dama furiosa de uma palidez mórbida, cabelos
desgrenhados pela nevasca e punhos que vibravam um machado de proporções
gigantescas contra os poucos que ainda se atreviam a confrontá-la.
Uma piscada de olhos e a vampira
investiu com golpes sucessivos contra aqueles que lhe atrapalhavam o curso até
que as armas de ambos se tocassem. Era como se o menor sussurro não se erguesse
enquanto os dois lutavam.
Clarisse acertou seu adversário
primeiro, cortando-lhe o ombro e rompendo qualquer tecido que ficava entre um
lado e outro do braço. O lorde, cujas veias espirravam sangue e que ainda tombava sob o
impacto do golpe, fez sua lâmina penetrar ossos e tendões da criatura com
rapidez, decepando sua perna e obrigando-a largar o machado.
Em uma batida de coração humano, os dois
caíam. Como outrora, Radu definia a batalha à medida que seu braço se regenerava
e ele decapitava a condessa, última das filhas do antigo Draculea, e que sumia
entre cinzas em uma expressão de dor.
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Usufruindo do novo trono, Radu apreciava
o sangue mais quente das damas de companhia da condessa enquanto seus cães
exterminavam os poucos que restaram.
Havia extinto todos os que o ameaçavam,
a começar por seu irmão, que antes tanto governou e aterrorizou aquelas terras - terras de Radu.
Ele ria. Eram gargalhadas comuns aos que
não têm alma, e elas continuavam a se espalhar pelos corredores mesmo quando
seus lacaios temerosos sussurraram que os lobisomens haviam chegado.
Nada naquele momento poderia agradar
mais ao vampiro que refrescar sua memória com a imagem de seus cães entrando no
salão, todos vestidos em retalhos do que um dia pode ser chamado de roupas.
Eram os mesmos oito lobos que guardavam
os segredos das florestas densas, inimigos naturais de sua raça, guardiões que
se curvavam a Radu como na primeira vez, onde pediram sua ajuda para aniquilar Draculea
e todos os seus inimigos, sendo ele, apenas ele, o senhor de toda a Valáquia e
regiões vizinhas.
Aos pés de Radu, contorcido para não
tocar nos desnudos corpos que jaziam ressequidos ao trono, Victor, senhor dos
lobisomens, se ajoelhou e beijou a mão do vampiro.
Sorriu para o lorde:
– Esses eram os últimos vampiros a se
oporem a vós? Radu... meu Lorde. – A voz
do homem era quase humana. Quase.
– Sim. – Radu sorriu levemente. – Agora,
meu aliado, governamos estas terras. – O morto sorria, gesticulando lentamente
com as mãos.
Victor observava o sanguessuga. Tinha
nojo da criatura, e pensava se já havia chegado a hora de romper o pacto.
– Acredito que agora queiras que eu
pague teu preço, valoroso Victor. O que apreciarias? Desejo muito fazer um bom
agrado. Que tal um quinto das terras, nas margens ao norte? Há matas, terra,
escravos... – e exibiu um sorriso cruel; sabia que estava falando das terras do
próprio lobo. – O que desejas, meu caro? Mulheres? Garotos? Vinho? Aço?
Sangue...?
Mas o vampiro não continuou. Suas palavras
foram sumindo à medida que o homem à sua frente crescia em um rugido estrondoso
e sua pele se tomava de uma espessa pelagem negra. Os guerreiros se recuaram: sua
cabeça agora era a de um lobo e suas mãos expunham garras negras.
De pé, à frente do trono, Radu entendia
tudo. A aliança havia sido rompida; agora começava a nova guerra. E ele
empunhou a espada, se posicionando para lutar. Não cairia pelas mãos de um
simples lobisomem insubordinado.
Os dois oponentes cautelosos começaram a
se estudar em círculos, encaravam-se e esperavam o movimento menos prudente do
adversário. Enquanto isso, lobos se engalfinhavam com escravos impedindo que a
luta fosse perturbada.
De súbito, os dois investiram:
O vampiro visou a garganta do lobo, e
este não esquivou, tomando o golpe que fez seu sangue esguichar e um ganido de
dor surgir. Aproveitando aquele movimento, Victor cravou suas garras no abdômen
da criatura, que resmungou e foi lançada de volta para o trono com a força do
golpe.
O lobisomem pulou em cima do vampiro em
um frenesi de batalha. Investiu contra seu abdômen novamente e, atingindo o
buraco que já sangrava, fez o vampiro sentir suas entranhas queimarem em frio. Tentou
reagir, enfiando repetidamente a espada na garganta da besta, mas era inútil. Logo,
apenas os restos do imortal permaneciam.
Já longe das terras humanas, os lobos se
reuniam à alcatéia. Neles o aroma persistente do castelo que queimava
denunciava o fim de cada demônio, lembranças que eram levadas das futuras
gerações como a fumaça que subia.
Juntos, lobos e lobisomens uivavam em um
rito de fim de guerras, uivavam comemorando o fim dos Lordes vampiros.
Ou assim os lobos pensavam...
Autor: Felipo Bellini Souza Criação: 02/03/2009 Objetivo: Antologia Metamorfose
Lobos na Sombra.
In:
Ademir Pascale. (Org.). Metamorfose - A Furia Dos Lobisomens. 1 ed. São Paulo:
All Print Editora, 2009, v. 1, p. 160-164.
Texto também publicado em: www.cavaleirosdasnoitesinsones.com
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